Crítica – Anora: Uma cinderela de acrigel

A moral dos contos de fábulas mudou, mas seu plot é o mesmo. Em Anora, vencedor do prêmio de melhor filme na edição do Oscar 2025, Sean Baker, maior vencedor da noite, reescreve uma Cinderela com acrigel, brilhos nos cabelos e boletos atrasados, e o sapatinho de cristal agora é um anel de diamantes, símbolo não da pureza ou do amor verdadeiro, mas da promessa de sair do vermelho. No cinema de Baker, o sonho americano já nasce com prazo de validade, embalado em plástico bolha e vendido em suaves prestações.
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A graça do filme, e claro, seu veneno – está em como ele posiciona cada personagem na cadeia alimentar do trabalho precarizado, onde ninguém tem tempo ou energia pra sonhar, mas todo mundo tem um chefe (ou um cliente, ou um dono) pra responder. Ser dono da própria vida é luxo pra quem pode se dar ao luxo de fracassar sem perder tudo. O olhar do filme é clínico: do guincheiro ao segurança da boate, cada um tenta manter a própria cabeça fora d’água enquanto os verdadeiros donos da festa sequer notam a água subindo.
Anora é ingênua e esperta, mas nunca vira uma caricatura. Igor, talvez o personagem mais adorável do filme, não existe para salvá-la, mas para lembrar que dignidade, às vezes, é só alguém reconhecer que você está ali.
Baker entende que o capitalismo não é só uma máquina de moer pobre, é uma máquina de fazer ricos patéticos. O playboy herdeiro, com seu poder sem autonomia, é um covarde trágico, tanto quanto os proletários que ele esmaga sem nem perceber. A graça cruel do filme é essa: cada personagem, de Anora ao herdeiro, é uma engrenagem emperrada de uma mesma máquina sem sentido alimentada pelo capitalismo tardio. É uma tragicomédia da humilhação em cadeia, onde ninguém escapa da precariedade. E se o único alívio é rir disso, que bom que Baker é engraçado.
No fim, Anora não é sobre derrotar os poderosos, e sim sobre o absurdo de ainda tentarmos.