Quando ser artista importa mais do que fazer arte – Crítica: The Electric State

Quando ser artista importa mais do que fazer arte - Crítica: The Electric State
Quando ser artista importa mais do que fazer arte – Crítica: The Electric State / Foto: reprodução Netflix

Quando Millie Bobby Brown declarou, sem nenhuma vergonha, que “não gosta de assistir filmes” e que “não consegue ficar sentada assistindo nem os próprios filmes”, ela não estava apenas confessando uma idiossincrasia pessoal. Estava, talvez sem perceber, resumindo o zeitgeist de toda uma nova geração que quer ser artista sem precisar consumir arte, que quer criar sem precisar perder tempo aprendendo.

Crítica: Anora

A atriz, mundialmente conhecida por Stranger Things, teve a sorte de ser escalada para um papel que pedia pouco. No início, bastava uma expressão vazia e uma cabeça raspada para convencer o público de que ali havia algo de enigmático. O problema veio quando Eleven começou a falar. E atuar. A partir daí, ficou evidente que Millie não tinha repertório, e talvez nem muito interesse em adquiri-lo. Dizem que sugeriram a ela assistir a mais filmes, estudar, quem sabe até aprender alguma coisa. Mas pedir esse tipo de coisa para certas gerações é como sugerir a um peixe que experimente respirar fora d’água.

Corta para Electric State, o projeto mais caro da história da Netflix, onde os irmãos Russo – que, desde que saíram do universo Marvel, parecem estar brincando de quem gasta mais dinheiro sem contar uma história – tentam, sem sucesso, encontrar alguma profundidade em sua protagonista. São duas horas e meia de filme onde Millie Bobby Brown está ali, no enquadramento, participando da cena, mas sem qualquer nuance que indique que há uma pessoa de verdade por trás da personagem.

Não que isso fosse salvar Electric State, um desses produtos de streaming que parecem montados a partir de notas de rodapé de reuniões de executivos. O filme tem cara de importante, tem pose de evento, tem orçamento de blockbuster, mas falta a ele uma alma – ou pelo menos um conceito coeso que conecte a parafernália visual a alguma ideia real. No fim, resta ao editor o ingrato trabalho de tentar fazer parecer que havia um filme ali o tempo todo.

Mas Millie Bobby Brown é só um sintoma de um problema maior. Querem ser diretores, mas não assistem filmes. Querem escrever roteiros, mas não leem. Querem atuar, mas acham teatro chato. Essa geração que cresceu consumindo vídeos acelerados de 30 segundos e que precisa de um segundo estímulo visual enquanto escova os dentes tem pavor da imersão. Aprender demanda tempo e paciência, duas coisas que a nova safra de criadores não quer desperdiçar.

E aqui entramos no grande dilema da arte: como criar algo relevante sem a disposição para viver o tempo do ócio? Grandes artistas não surgem da produtividade frenética, mas do tédio, da reflexão, da experiência acumulada. O ato de fazer arte não combina com a lógica de engajamento das redes sociais, onde cada minuto improdutivo é um minuto perdido. Mas sem esse tempo de digestão, tudo o que se produz são imagens, frases e performances ocas, feitas para impressionar no primeiro contato e evaporar na sequência.

Enquanto a cultura do “faça qualquer coisa rápido” continuar a se sobrepor à do “faça bem e demore o tempo que for necessário”, teremos mais filmes como Electric State: cheios de dinheiro, vazios de cinema.

Letterboxd

Newton Fusetti

Newton Fusetti é jornalista, roteirista e apaixonado por cinema. Formado em Direção de Cinema e TV pela EBAC, dedica-se à escrita e à análise cinematográfica.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *